
O JOÃO LUCAS? Em Linda-a-Velha, a terra onde nasceu, era conhecido como o Tripé.
Porque o marmanjo queria fazer tudo e bem: dar um baile ao Rick Wakeman no piano, corrigir em traços vigorosos alguma debilidade do desenho de Corto Maltese, e escrever com a precisão com que o diabo contava de trás para a frente todos os cabelos na trunfa de Byron.
Só não cheguei a saber se sempre ficou com a miúda mais gira da rua.
Mas os três dons não lhe tiram.
Depois tocou com alguns dos melhores músicos/cantores da praça portuguesa (O Sérgio Godinho, o Fausto, o João Afonso, entre outros), e fez arranjos do caneco. E continuou a fazer “canecas” de primeira água em inúmeras peças para teatro e dança.
A última, ouvi-lha eu em Maputo, no espectáculo «Gold», onde com três timbilas, flautas e algumas vozes me debruçou sobre os caminhos do infinito.
Por isso, ouvindo o disco, onde o seu piano, só com a voz de João Afonso e sem rede, reescreve algumas canções de José Afonso, saiu-me o poema que vai abaixo:
ELOGIO E DESSIMPLIFICAÇÃO DE JOÃO LUCAS
À luz de um coto de vela, embute-se a alba
na brisa nascente; a noite, adivinhando
fissuras na casca do seu ovo, retira-se
furtiva, cingida ao voo da garça. Já lhe fui
mais apegado, mergulhador em recifes
invisíveis, guarda de bengaleiro
nos bares de atribulação lunar.
Um copo era um farol nocturno!
E não via que a noite é um anfitrião
enlouquecido pela paixão de dissentir,
rato que fosforesce assim que vê águia.
Prefiro agora discernir entre uma esquina
e uma curva, e surpreender o vento
a dar o litro no estofo da floresta. Não
é uma mera questão de estar lúcido,
de estar apto para lhe tactear o recorte, mas
o reconhecimento: a luz é o maior mistério,
um palimpsesto onde se sucedem graus, tons,
rasgaduras e sedas, e sondá-la é um perpétuo
inacabamento. No fundo, não enxergávamos
que a noite é-nos intrínseca, como o bigode
que amiúde aparamos, e que só a luz
nos é dada, decerto para capotarmos
no grau de inadaptabilidade que nos distingue
e supera, até valorizarmos o que por nós
espera para ser crepitação e confluência.
A noite é o Urano que devora os filhos
– imagine-se – à procura de dentes de ouro.
Aspirado pelo peso do seu próprio impasse.
Quem se especializa na noite, no seu íntimo
não descola do plinto da memória,
gargalo que só admite o ensimesmar-se.
Prensa de nuvens, a luz ressalta no clamor
dos meios tons, moldada em chuva,
em áleas de jacarandás, em verniz e fuligem.
A tudo abraça, inclusive o lixo, e na sua extensão
aprendes a venerar o que desconheces.
Não há nisto nada de exclusivamente solar,
de aplausos sem fim, ou de isenção de melindres,
simplesmente a luz abraça o vário, e dança
no meio da turba, ao contrário da noite
que se oculta atrás de uma matilha de sombras.
O que me sussurram, noite dentro, vezes sem conta,
o timbre, os dedos nítidos de João Lucas ao piano.